quinta-feira, julho 27, 2023
Repetidamente
tentei entender a profundidade de seus olhos. as olheiras da exaustão, o castanho claro que reflete o passado e o presente, a beleza de quem controla a própria vida e ainda assim não sabe onde ir, como ir, quando ir. quando sair daqui.
tentei capturar com meus olhos a felicidade do tempo, as pequenas rugas quando você ri, o desenho dos lábios semi-cerrados. de perto, há beleza nos detalhes que só o tempo permite registrar.
tentei guardar em mim o delineado dos ombros, a força do abraço, às vezes suave, outras, tenso, como se o afago doesse, amedrontasse, criasse um espaço de conforto desconfortável entre o que foi e o que será. aquilo que não se sabe.
tentei tocar seu passado. você reside ali? talvez eu também. embora as vozes me lembrem sempre que eu vivo no futuro. naquilo que não virá. não será. tentei tocar nossos tempos em meus sonhos, encadear na linha lógica aquilo que não é mais que um emaranhado confuso, um novelo impossível de desembaraçar. não acho início, meio e fim.
tentei ver além da carapaça de força, saber a história que suas cicatrizes podem contar. tentei contar suas marcas, tentei dizer que não há como esconder. é possível te sentir. dentro de mim, é possível te ler, pequenos trechos por vez. é preciso tempo para observar.
(toca repetidamente o medo, tocam os sons do que fui, toca a morte de um eu, tocam as lembranças de que eu já fui, e relembrar o futuro que eu toco e que se desfaz como o horizonte. toca repetidamente a dúvida. a pergunta.)
tentei guardar em mim a profundidade dos seus olhares. para não viver mais no futuro.
quarta-feira, julho 05, 2023
Amar o desamor
há dias, o mesmo verso. o eco daquilo que sinto e não sinto, o que me completa e não sou eu. não mais.
reconhecer a estabilidade, demandá-la. mas não desejá-la. sentir, estar e não ser, estar e fincar. entranhar.
mas quais raízes? criar novas. resposta fácil para perguntas que sequer consigo formular. descer aos solos em busca de nutrição enquanto o sol é quem eu quero que me toque.
territórios inalcançáveis ao mesmo tempo que não se tem lugar. sentir os pés no chão. sentir. estar. e saber que é na calmaria que se cresce.
saber e sentir e não desejar. os desejos são traiçoeiros. você sabe que eu desejo o caos.
você sabe que eu sou apaixonada pelo desamor.
quarta-feira, abril 26, 2023
Psicanálise noturna
hoje, eu matei minha mãe. a faquinha de serra atravessou sua pele, sua gordura, seu estômago. não saiu sangue na hora e ela me olhou perplexa. já não era ela e não era eu. não havia mais nada.
hoje, eu matei minha mãe. não foi que minha mãe morreu (de novo), não foi um ela estar viva e sumir, não foi um ato dela. meu. ela não caiu da escada (como antes), ela não fora abandonada na estação de trem (como antes). ela não foi presa na alfândega e desapareceu (como antes). não hoje.
hoje, eu matei minha mãe em ato deliberado, firme, confuso, jocoso até. como matar a mãe com uma pequena faquinha de serra? estar passando manteiga no pão, virar, ouvir, enraivecer, acertar. acertar em cheio. sem saber onde. sem saber anatomia. sem saber como.
hoje, eu matei minha mãe para matar algo em mim. a doença (qualquer uma), a presença insuportável da ausência, a desesperança, a data comemorativa que chega e me obriga a viver, então, matei.
hoje, eu matei minha mãe e acordei com ela ainda mais forte. entalada na garganta, tosse braba, angústia no peito, chiado no peito, câncer no peito profundo, pulmão tomado, memória da exaustão.
hoje, eu finalmente matei minha mãe. e ela reviveu.