"(...) Posto diante de todos estes homens reunidos, de todas estas
mulheres, de todas estas crianças (...), cujo suor não nascia do trabalho
que não tinham, mas da agonia insuportável de não o ter, Deus arrependeu-se
dos males que havia feito e permitido, a um ponto tal que, num arrebato de
contrição, quis mudar o seu nome para um outro mais humano. Falando à
multidão anunciou: "A partir de hoje chamar-me-eis Justiça". E a multidão
respondeu--lhe: "Justiça, já nós a temos, e não nos atende". Disse Deus:
"Sendo assim, tomarei o nome de Direito". E a multidão tornou a responder:
"Direito, já nós o temos, e não nos conhece". E Deus: "Nesse caso, ficarei
com o nome de Caridade, que é um nome bonito". Disse a multidão: "Não
necessitamos caridade, o que queremos é uma justiça que se cumpra e um
direito que nos respeite". Então, Deus compreendeu que nunca tivera,
verdadeiramente, no mundo que julgara ser seu, o lugar de majestade que
havia imaginado, que tudo fora, afinal, uma ilusão, que
também ele tinha sido vítima de enganos, como aqueles de que se estavam
queixando as mulheres, os homens e as crianças, e, humilhado, retirou-se
para a eternidade. A penúltima imagem que ainda viu foi a de espingardas
apontadas à multidão, o penúltimo som que ainda ouviu foi o de disparos,
mas na última imagem já havia corpos sangrando, e o último som estava cheio
de gritos e lágrimas".
(Trecho inicial do prefácio do escritor português José Saramago para o
livro de fotografias de Sebastião Salgado "Terra")
Nenhum comentário:
Postar um comentário