segunda-feira, agosto 30, 2021
As mentiras que as mães contam
Para que possamos lidar com o luto, dizem que é preciso falar sobre a morte, nos prepararmos para a morte, compreendermos que a existência é finita.
Eu duvido. Não porque eu ache desimportante, entendam. Mas porque questiono se tal preparação seja capaz de mudar o abalo sísmico que a morte causa, que o extirpar alguém do mundo seja amenizado pelo reconhecimento do fim.
Você sempre me ensinou sobre a morte. Aliás, sobre o que chamava de desencarne. Sempre ensinou que a vida carnal acabaria, que sua existência, que a minha, que a de todos os pequenos e grandes seres têm como a linha de chegada não a vitória, mas o próprio fim. A certeza da finitude sempre esteve ao meu lado. Ao contrário de você, no entanto, nunca consegui sentir o sublime da crença no plano espiritual, no sobrenatural, nos anjos, nos demônios, nos espíritos brincalhões ou nos obsessores. Eu nunca senti qualquer conforto fora deste mundo. O fim da sua existência corporal sempre era seguida da certeza que você se manteria em espírito, que estaria ao nosso lado.
E talvez essa tenha sido a sua mentira: sua morte foi o fim de tudo, do chão, do ar, do céu, das águas, de mim. O seu fim foi tamnbém meu fim. Arrancada de mim, sua voz, seu cheiro, suas palavras, seus conselhos, suas brigas, nada reverbera mais. Só a ausência ecoa e ecoa e ecoa. Como um silêncio ensurdecedor poderia ecoar? Como o que não existe pode transbordar? Esse é o milagre do seu fim: a certeza de que tudo sai das bordas, as fronteiras se esfarelam com facilidade, as vasilhas nada mais retêm, as lágrimas não são engolidas, o sangue não pára de jorrar e, mesmo assim, não morro. Seu fim criou um silêncio que preenche e transborda, e, simultâneamente, o vácuo vai sugando lentamente todo o ar de cada célula pequenina que passa a viver a morte. O seu fim trouxe o milagre dos espaços preenchidos com vazios, os pulmões que se dilatam e se contraem mas nenhuma partícula de oxigênio se move no sentido correto.
Ou, talvez, a sua mentira tenha sido contada como uma verdade. Ou uma meia verdade. Meias verdades são mentiras? Você contava da sua morte como se o sal do seu suor ainda estivesse em seu nariz com pontos pretos e que o seu medo de água ainda estaria presente. Está. Só que não em você. Sua verdade foi dizer que estaria aqui. E está. Mas esse como, o como dilacera. Eu achei que saber previamente da sua morte poderia trazer algum consolo. Eu sabia que estaria próxima, eu ouvi seu som da morte, eu ouvi no seu gemido que logo mais seu corpo estaria morto e enterrado. Saber não vale nada. Saber que você chegaria ao fim não preveniu que eu não soubesse mais caminhar. Não porque não saiba elevar o pé devagar, mover a perna para frente e recolocar o pé, devagar, ponta do pé primeiro, calcanhar depois e com a outra perna fazer da mesma forma, levantar, mover, baixar, isso eu sei. O que me faz parar, então, em frente ao espelho é saber que não existe mais caminho, que eu sou frangalhos e farrapos e que não importa o quanto eu finja bem que te esqueci, você retoma meus sonhos, eu que sempre tenho pesadelos, e vem de volta à tona todo o seu sofrimento, seus saberes e não saberes. Minhas mãos suam, meus lábios suam, eu acordo e você continua morta.
Você contava que seu desencarne chegaria. Eu achava que saberia lidar com isso. Eu achava que aquele primeiro sonho, ainda nova, em que você morria caindo da escada seria mentira. Você caiu dos meus braços, caiu da cama, caiu no sofá. Caiu e eu não sabia se você se levantaria. Não levantou. Você contou e contou e contou. E eu acreditei que sentiria tudo, menos saudade.
"Aonde está você agora além de aqui dentro de mim?" - Vento no litoral. Legião Urbana.
Nenhum comentário:
Postar um comentário