segunda-feira, setembro 21, 2020

Primaveril

Você perdeu o primeiro dia de cheiro de chuva do ano. O primeiro ato dos céus para relembrar que sofrimento se comunica. Como se comunica. E as lágrimas das nuvens com a força da dor nos caminhos de 170 dias. 170 dias maquinando como esvair-se. Chorar quanto depois de tanto tempo? Você perdeu o primeiro espetáculo das nuvens gloriosas que se batem entre elas e explodem em gritos de desespero. Os trovões. Explodem em conflitos intensos, tensos, luminosos. E adentram em estado de torpor e se dissipam como se nunca houvessem sido clamadas pelas terras secas. Você perdeu o primeiro espetáculo da tristeza do ano. Que inaugura aos olfatos o dia em que na terra pode algo renascer.

quarta-feira, setembro 16, 2020

Quarta-feira.

As quartas-feiras são os dias em que eu nasci. São meus dias de potência, regidos pelo metal líquido que se faz planeta. Regidos pelo calor que me move, pelo combustível que queima incessantemente e que, à distância, me incendeia. As quartas são os dias em que posso reabrir as comportas para dar passagem ao rio que se forma em mim. Eu choro. E coloco, em seguida, em brasas os caminhos que tendem a se fechar. As quartas são dias de relembrar quem sou. De onde vim. Da dor. Da tristeza. Da violência. E de onde me refiz: na candura, no cuidado, na aceitação da fragilidade. Os metais, quando quentes, são maleáveis. Ao entrarem em contato com minhas lágrimas, endurecem. E fazem-se armas.

Segunda-feira (dia de Lua)

A pele arrepia. Finalmente, a dor chega. O medo. Tomo por real aquilo que quase aconteceu. Eu quase não estaria aqui. Eu quase morri. O homem que eu amei quase me matou. E eu sobrevivi. Sobrevivi? Deixo para trás um pedaço de mim para colar novamente meus pequenos pedaços. A pele, roxa, arrepia e dói. Os olhos, sensíveis à luz, choram. Eu coro. Ecôo. Minhas mãos ainda tremem. Hoje, é regido pela lua. Essa que traz as cores da noite às superfícies, que ilumina quando iluminada, que cerca de luz tangente. Hoje não sou mais eu, sou outra. Caio em mim percebendo que modifiquei. A pele arrepia. Eu não morri. Eu ainda estou aqui.

Sobre responsabilidades (dia de Saturno)

O grito ríspido ainda ecoa em meus ouvidos, seguido por um pedido pequeno de desculpas de que sabe que o endereçamento foi equivocado. No momento, raiva e medo criaram uma nuvem e essa, antes de se dissipar, não permitiu que a clareza dos pensamentos fossem vistos. Às vezes, é preciso que outro tome decisões por nós porque o mundo palpável nos escapa. Encobertas pelo véu tecido pela tristeza, pelos traumas, pelas dores incomunicáveis, essas tramas finas impedem que vejamos as curvas sinuosas à frente. É preciso que alguém levante a luminária — de óleo, com velas, de fogo — para que seja possível enxergar que algo começa também quando a reta termina, e que as curvas podem continuar pela eternidade. Mas, que o guia, os guias, as lamparinas também poderão permanecer — desde que cuidemos delas. Que alimentemos com o combustível vital. Para isso, é preciso reconhecer que o grito dado nem sempre foi direcionado corretamente. E que aquele que se coloca entre o eu e o mundo pode saber e dominar outros aspectos que são ignorados solenemente na impressão de que há controle. Não há controle. Nem sempre há controle. Podemos ser obrigados a vomitar as pedras que nos engasgam e, com elas, os frutos e os filhos da nossa existência. Regurgitamos porque não há controle sobre o estômago, o abdômen, o diafragma. E faz-se novamente o tempo — o que segue, o que passa e o que diz qual coisa deveria estar em outro lugar. Deveria eu estar em outro lugar? O que virá também não está dado. O que foi, aconteceu. Recusamos o passado quando não nos aparece como queríamos que ele tivesse sido erguido. E destruímos o castelo das memórias até que sobrem ruínas. Mas, as ruínas estarão lá. E, poderemos, poderei, ver sua mão após a neblina? Quando as cortinas de nuvens densas se fecharem, seremos capazes de nos enxergar novamente? Serei capaz de me ver como de fato sou? "Here I am, pry me open What do you want to know? I’m just a kid who grew up scared enough To hold the door shut And bury my innocence But here’s a map, here’s a shovel Here’s my Achilles’ heel I’m all in, palms out I’m at your mercy now and I’m ready to begin I am strong, I am strong, I am strong enough to let you in." No play: Sleeping at last — eight. https://www.youtube.com/watch?v=K99i5GF65to&list=RDMMXwnPFg3JBFU&index=6

sexta-feira, setembro 11, 2020

Em si mesma

Quando fui eu pela última vez? Quando foi o último suspiro autêntico? Quando a lágrima foi minha e só minha? O que me atravessou e me lançou ao mar aberto? Sem saber o que fazer, como fazer? Afundar? Nadar sem rumo? Deixar-me levar pelas correntezas ou lutar? Quando foi a última vez que a decisão foi minha? Quem deixou que essas dores se instalassem e que, cada vez mais, eu sentisse menos como se eu fosse eu mesma? Quem permitiu que eu visse de fora - e não de dentro - os acontecimentos? E quem permitiu que algumas coisas acontecessem? Em que terreno foi plantada a dívida moral que me guia? (Guia? Orienta? Ou tortura?). Quais terras seriam férteis para outros pensamentos? Quando eu fui eu pela última vez? Na hora da briga? O grito sou eu? (no play, adam levine - can a song save your life?: "please see me").