domingo, setembro 19, 2021
Alter ego
Estou certa de que tua morte fez morada em mim porque agora posso conversar com você. aquela pessoa interior que me acompanhava, com quem conversava e dividia meus dramas mais superficiais - os profundos, não gosto de tocar - agora tem voz, cheiro e até cor de cabelo.
A tua morte criou em mim uma outra eu, agora recheada de você, que pode escutar tudo o que eu nunca fui capaz de dizer. que não sou capaz de dizer. então, eu penso alto e você agora me ouve porque sua ausência provocou o nascimento de alguém com quem conversar. você está em mim e ainda assim não está mais.
Confesso que, às vezes, eu grito na esperança de que, de repente, você ressurja para mandar eu abaixar a voz. nesse meu som que ecoa e se renova, eu escuto você dizer que se orgulha da cama arrumada e da casa limpa.
Nesse instante, exatamente nesse instante do "orgulho", eu sei que sou só eu de novo conversando comigo mesma sobre os meus traumas mais banais - quem nunca quis que a mãe sentisse satisfação e felicidade ao se deparar com a vida das filhas?
Eu grito de novo porque não consigo respirar e espero que o som abafado no travesseiro seja só isso mesmo e não meu cérebro tentando me matar. Eu grito e acordo com tremor nas pernas e não posso te afirmar se é meu corpo sendo você e eu entendendo a repreensão ou se sou eu fugindo e entrando na mesma trilha desastrosa e meu corpo dizendo pra não ir.
Eu atendo o seu comando e começo a falar baixinho e você vira as costas e fica muda. anda um pouco para frente e desvia da gaveta semi aberta do armário de madeira maciça que nunca te pertenceu, esteve por 15 anos aguardando o dono que nunca apareceria.
Você desvia e fecha a gaveta com a mão e a porta se abre e faz aquele barulho de filmes de terror e você ajusta o pedaço de papel e empurra a porta com aquele encalço. você nunca arrumou a porta porque o armário nunca foi teu, mas era.
E como tudo que te pertenceu, não era. nada era e tudo era. e tudo é. porque sua morte foi impregnando todos os cantos e a cada curva, portal ou rua sem saída, tudo é você. até a voz dentro de mim. não há música que espante ou rato que afugente. você não tem medo.
você se tornou um eu com quem eu posso dizer eu te amo, me desculpe, eu te perdoo. e, como você é você, e sou eu, eu sei que não há resposta.
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