terça-feira, outubro 05, 2021
Óleo sobre tela
(Já sentiu estar presa no mesmo lugar?
As páginas dos dias, meses, anos mudaram. E a tela continua pequena.)
O branco vazio vai sendo preenchido por camadas e mais camadas de tinta óleo que não seca, mas se desgasta, o verde torna-se, pouco a pouco, marrom, o vermelho torna-se, pouco a pouco, marrom. a opacidade dos olhos passa a chamar mais atenção do que o brilho que um dia existiu. as cores tornam-se uma só dentro dos contornos pretos, marcados (em ferro, madeira e pó).
A tela, antes vazia, sinônimo de uma vida por vir, a constituir-se, abrir-se ao mundo, transforma-se em um tecido poído e sujo, embrulhado de mal jeito no fundo do armário. As pinceladas, agora, são meros rastros do que já foram e os pequenos furos das traças já se fazem mais que visíveis. Vê-se que a pintora tentou fazer e refazer, tentou colocar pequenos remendos nos rasgos maiores, refinou as técnicas para que alguma cor fosse reanimada, usou cola em bastão nos reparos com papel para não deixar o tecido ainda mais enrugado. Tudo em vão.
A tela continua cada vez mais a preencher-se sem sentido. Os pontos pretos vão se proliferando como fungos, mas são só tinha velha antes colorida. Os fungos trariam vida, a pintora pensa. Os fungos cobririam todo o rosto antes vívido, agora pálido, o vestido antes novo, agora roto, roto como a tela que é invadida pelo marrom profundo e pelo preto marcado e pelo preto em pontinhos, pequenos pontinhos que poderiam ser vida. Mas não são.
A tela em branco foi preenchida pela tinta e pela poeira e pela água que inundou todos os cômodos e todas as tralhas foram lavadas e a tela permaneceu. No mesmo lugar. As páginas dos dias, dos meses e dos anos mudam. As cores originais desaparecem. A pele amarelada, os olhos opacos, a boca de um rosa sem sangue, as veias sem sangue, o peito sem sangue.
A tinta óleo nunca seca. E ainda assim a tela não consegue retornar à ficção de seu esplendor.
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