quinta-feira, julho 27, 2023
Repetidamente
tentei entender a profundidade de seus olhos. as olheiras da exaustão, o castanho claro que reflete o passado e o presente, a beleza de quem controla a própria vida e ainda assim não sabe onde ir, como ir, quando ir. quando sair daqui.
tentei capturar com meus olhos a felicidade do tempo, as pequenas rugas quando você ri, o desenho dos lábios semi-cerrados. de perto, há beleza nos detalhes que só o tempo permite registrar.
tentei guardar em mim o delineado dos ombros, a força do abraço, às vezes suave, outras, tenso, como se o afago doesse, amedrontasse, criasse um espaço de conforto desconfortável entre o que foi e o que será. aquilo que não se sabe.
tentei tocar seu passado. você reside ali? talvez eu também. embora as vozes me lembrem sempre que eu vivo no futuro. naquilo que não virá. não será. tentei tocar nossos tempos em meus sonhos, encadear na linha lógica aquilo que não é mais que um emaranhado confuso, um novelo impossível de desembaraçar. não acho início, meio e fim.
tentei ver além da carapaça de força, saber a história que suas cicatrizes podem contar. tentei contar suas marcas, tentei dizer que não há como esconder. é possível te sentir. dentro de mim, é possível te ler, pequenos trechos por vez. é preciso tempo para observar.
(toca repetidamente o medo, tocam os sons do que fui, toca a morte de um eu, tocam as lembranças de que eu já fui, e relembrar o futuro que eu toco e que se desfaz como o horizonte. toca repetidamente a dúvida. a pergunta.)
tentei guardar em mim a profundidade dos seus olhares. para não viver mais no futuro.
quarta-feira, julho 05, 2023
Amar o desamor
há dias, o mesmo verso. o eco daquilo que sinto e não sinto, o que me completa e não sou eu. não mais.
reconhecer a estabilidade, demandá-la. mas não desejá-la. sentir, estar e não ser, estar e fincar. entranhar.
mas quais raízes? criar novas. resposta fácil para perguntas que sequer consigo formular. descer aos solos em busca de nutrição enquanto o sol é quem eu quero que me toque.
territórios inalcançáveis ao mesmo tempo que não se tem lugar. sentir os pés no chão. sentir. estar. e saber que é na calmaria que se cresce.
saber e sentir e não desejar. os desejos são traiçoeiros. você sabe que eu desejo o caos.
você sabe que eu sou apaixonada pelo desamor.
quarta-feira, abril 26, 2023
Psicanálise noturna
hoje, eu matei minha mãe. a faquinha de serra atravessou sua pele, sua gordura, seu estômago. não saiu sangue na hora e ela me olhou perplexa. já não era ela e não era eu. não havia mais nada.
hoje, eu matei minha mãe. não foi que minha mãe morreu (de novo), não foi um ela estar viva e sumir, não foi um ato dela. meu. ela não caiu da escada (como antes), ela não fora abandonada na estação de trem (como antes). ela não foi presa na alfândega e desapareceu (como antes). não hoje.
hoje, eu matei minha mãe em ato deliberado, firme, confuso, jocoso até. como matar a mãe com uma pequena faquinha de serra? estar passando manteiga no pão, virar, ouvir, enraivecer, acertar. acertar em cheio. sem saber onde. sem saber anatomia. sem saber como.
hoje, eu matei minha mãe para matar algo em mim. a doença (qualquer uma), a presença insuportável da ausência, a desesperança, a data comemorativa que chega e me obriga a viver, então, matei.
hoje, eu matei minha mãe e acordei com ela ainda mais forte. entalada na garganta, tosse braba, angústia no peito, chiado no peito, câncer no peito profundo, pulmão tomado, memória da exaustão.
hoje, eu finalmente matei minha mãe. e ela reviveu.
domingo, agosto 14, 2022
Todo mundo tem direito à memória (Dia dos Pais)
(há alguns meses, um de meus irmãos comentou que nós, as filhas, ficaríamos tranquilas se, quando crescemos, meu pai tivesse whatsapp, implicando com isso que a ausência reclamada não aconteceria, mesmo que as mensagens fossem unicamente de bom dia. eu não tive coragem de dizer a ele que as ausências foram a parte menos traumática. foram as presenças, as doloridas.)
é verdade que somos pais e mães e irmãos e irmãs e tias diferentes para cada bebê que nasce. surgem novas pessoas, inteiramente novas e, ainda assim, completamente velhas. somos todos pais e mães e irmãos e irmãs e tias diferentes do que fomos para nossas mães e pais e suas filhas e seus filhos e sobrinhos porque cada gesto, cada cheiro, cada cor, cada pele que toca a nossa pele, desperta o mesmo e o distinto sentimento de que não somos inteiramente nossos próprios corpos e que não podemos confiar nas nossas mãos e nos nossos pés. ao pegar uma pequena criatura, ela pode cair. ao caminhar segurando a mão de outra, o tropeço virá. e sabemos que tudo aquilo é possível e passamos pelas nossas cabeças todos os erros e acertos para que aquele momento seja incrível e aquela nova pessoa e a velha pessoa possam caminhar sem se machucarem mutuamente. mas, prever não é precaver, e prevemos que a rachadura na calçada vai prender o pé da criança e a que a queda fará jorrar sangue de um pequeno joelho que ficará machucado de novo e de novo e de novo. e prevemos, tentamos desviar, e o pé se engancha no buraco da calçada e o caímos de joelho no chão e reabrimos a ferida cuja pele fina quase cicatrizava.
e de novo, e de novo, e de novo, as risadas alheias se tornam choro engolido que faz doer os ouvidos quando passa pela garganta. o ranho arranha tudo que desce ali para fazer o estômago revirar e os olhos marejam e o sal dói quando as pálpebras se fecham. e é iniciado o ciclo de parar, pensar, calcular, andar, torcer para não cair para não sofrer o ralhar das bocas que riem e que gritam e não sofrer o tapa que viria a educar que não se pode cair. não se pode cair. prever, precaver, fingir, esconder. sentar no banheiro agachada e chorar baixinho enquanto todas as suas entranhas e as mais sensíveis partes de pele arderem e o ar secar de tanta dor, dsor, dor. e fingir e fingir e fingir. e fingimos até conseguir proteger algumas das novas pessoas para que não tenham que chorar sozinhas, mas é tarde demais porque não somos a única mãe, pai, filho, irmã, tia do mundo e falhamos porque estamos sempre fadadas ao fracasso de ser nova pessoa para novas pessoas quando ainda choramos por conta dos pequenos cortes de papel embaixo de nossas unhas sempre bem feitas. e seremos de novo e de novo a lágrima entalada, a voz entalada, o vômito entalado, a vida entalada na boca no estômago.
para cada bebê que nasce, somos uma pessoa completamente nova e completamente velha, enrijecidas ou amolecidas pelo tempo (os curtos e os longos períodos que nos levam e nos trazem e nos jogam sob as águas para que nos lavemos e sejamos novas pessoas completamente distintas para a pŕoxima que vier). mas, cada bebê que nasce, abre todas as fendas e abismos que tão bem achávamos que sabíamos esconder com papel crepom e fita crepe. e a cada bebê que nasce, surge um novo pai que balança seus filhos na gangorra e enquanto uns se divertem, as outras têm certeza de que irão cair. e quando chegar o dia dos pais, a memória parecerá a mesma:o dia dos pais em que os pais levaram os filhos e as filhas para balançar na gangorra. lembra como estávamos altas? e gargalha. fomos deixadas ali de castigo. lamenta-se. lembra que perdeu o equilíbrio? lembra da gargalhada que ele deu quando eu caí?
todo mundo tem direito à memória. todo mundo tem direito a dizer sobre aquilo que aprendeu, sobre os valores que o pai do pai do pai de quem tem esse tanto de pai ensinou. o problema reside aí: todo mundo tem direito à memória. todo mundo tem direito à memória. mas eu preferia as ausências. estas, não demandariam esquecimento.
segunda-feira, maio 09, 2022
Dos silêncios
o som do seu silêncio ressoa nas omissões de dados, fatos, informações fundamentais para que meu caminhar fosse seguir a mesma trilha que você. cortando galhos diferentes e tropeçando aqui e acolá porque caminhar junto não é caminhar igual.
o som do seu silêncio preenche e transborda todos os quartos que nos acolheram e todas as casas pelas quais passamos e preenche cada espaço que as palavras não ditas deveriam ocupar. eu sinto a sua angústia de longe, sei que seus dedos quase tocam os meus, mas esperam eu esticar meu braço sem que voce peça, sem que você também abra pelo menos as mãos.
eu escuto agora suas lágrimas caírem aos poucos e mancharem o lençol, a toalha, a blusa, a minha blusa. a lágrima é vermelho sangue e mancha tudo o que toca. e eu escuto as lágrimas e entendo em que momento em que o silêncio era melhor que a fala porque a fala foi trágica demais e o chão já estava pronto para desmoronar.
eu segurei a tristeza que jorrava do seu pescoço e reafirmei meus valores e admiti meus erros e entendi o que estava engasgado na sua garganta. mas não antes de ser contaminada pelo caos que ali estava entalado, mas não antes de sua vida estar pendurada em um fio de teia de aranha.
(eu teci a teia mesmo sem querer presas. acabei eu esquecendo onde poderia pisar.)
segunda-feira, março 14, 2022
dos amores que vieram antes de mim (de meu amor por)
ainda lembro da sensação na espinha ao decidir desobeder. eu andava firme e segura para quem quisesse ver, pegava a chave do carro e dizia qualquer coisa, qualquer paradeiro, qualquer desculpa. e aguardava o som da mensagem, ou da fumaça do incêndio que eu acabara de começar. incêndio que encerraria-se deus sabe quando, que as fagulhas seriam deixadas em lastros e cascas e gramas secas para que reacendessem o inferno a qualquer momento.
ainda lembro da calmaria. da bonança depois da tempestade. ou da tempestade depois da bonança? os dias fazem-se confusos quando não há possibilidade de ordenação do caos. ainda lembro, portamto, do orvalho do dia em que ajoelhei pedindo perdão por existir, do frio do banheiro em que chorei clamando para que o mundo parasse, do calor nas bochechas enquanto eu gritava que não aguentava mais. eu não aguentava mais. mas o som não parou.
ainda lembro da dor em mim ao me perder, ao perder meu rumo, minha casa, meu cheiro. ao não saber qual era meu território. ainda lembro da crueldade de não saber mais em mim quem eu era - quem eu sou? - porém ouvir uma vez após a outra quem eu era para você: amor, demônio, amor, lixo, amor, perdição.
ainda confundo meu tatear no escuro para não acordar no meio do pesadelo porque a realidade era muito pior. sonhar com meu luto, com meus abusos, com meus afetos profundamente envaivecidos era melhor do que acordar com o tapa no estômago, com as acusações de ter ser pessoa, com as acusações de ser gente - com medo, faminta, incrível, caótica, inteligente, insensata, falante, falante, falante, faltante.
ainda lembro do sucumbir e ajoelhar e clamar e pedir e não orar somente porque não creio, mas pedir para que o mundo parasse para que eu pudesse respirar. uma porrada atrás da outra, mundo, calma, me deixa só secar essa lágrima, suor, enxaguar essa boca inflamada, essa garganta dolorida.
ainda lembro de buscar em vão as centelhas de quem eu era, mas sabendo que nunca fui. nunca fui porque sempre me esquivei de ser. me esquivei tanto que cheguei no ponto de partida. e este ponto de partida me parte em mil pedaços pois me lembro de tudo que tentei e tentei e tentei ser e não fui e não sou e quem serei? não sei.
(os amores que vieram antes de mim me ensinaram a não amar depois de vocês e agora quem sabe eu saiba amar depois de amar a mim mesma.)
sexta-feira, outubro 29, 2021
Das poucas coisas boas do mundo
passei o dia andando de um lado pro outro esperando o som do tremer do telefone. ia e vinha pela sala como se hoje fosse o melhor dia da minha vida. como se não houvesse nada a fazer a não ser esperar a vibração.
dancei várias vezes ouvindo a mesma música e repeti, repeti, repeti, enquanto cada palavra ecoava nas paredes ainda vazias. cada palavra que me dizia pra não deixar pra depois.
li e reli as conversas antigas, olhei profundamente nos meus próprios olhos e me permiti sorrir. sorrir e chorar e sentir esse frio na barriga e esse calafrio na pele e o toque suave no meu cabelo.
andei e andei e andei de um lado para outro até o piso gastar e cantei alto e brindei a mim mesma e caí cansada na cama e clamei aos céus que não fosse mentira. ficção, sim, narrativa. mas não mentira. a ficção é um mundo novo, a imaginação que não se deixa prender mais nas garras do tempo anterior.
(olho para você e sei que o passado virou futuro do pretérito, aquele que nunca se realizará).
no play: https://open.spotify.com/track/4G02O6Qd846OFww8HHQamh?si=Y_dqTVhGQ6G9zRq6U97eVg&context=spotify%3Asearch%3Aescopia
sexta-feira, outubro 22, 2021
Mitologias
me rasgou como papel antigo a ser descartado, mas me guardou em uma pequena caixa.
e fui aos poucos umidecendo, emudecendo, perdendo as cores que se misturavam entre elas, a tinta borrada da caneta no canto da página em que escrevi seu nome.
me dilacerou as bordas enquanto aos prantos eu pedia para colar os fragmentos de quem eu fui, para que me fizesse outra.
me cortou enquanto eu clamava para que preenchesse as frestas com ouro.
me quebrou em micro estilhaços para que eu fosse sua parte, mas ora não me encaixava por ser grande demais, ora por me apequenar diante da sua voz.
tentou construir outros moldes quando percebeu que a caixa me deixava transpirar e evitava que eu perdesse as cores e me tornasse neutra (nula, talvez).
me cuspiu enquanto eu pedia para que pintasse outras cores.
me despedaçou e me juntou e machucou e nas lacerações jogou seu ódio a si e a mim e a tudo que eu lembrava.
me tirou de tudo o que eu conhecia e, se por um minuto isso foi o êxatase, depois foi a maldição.
me arrancou as cordas vocais para que que não falasse, gritasse, para que nenhum som saísse do modelo perfeito que você criou para você, para que tudo fosse perfeito.
mas meus pequenos braços começaram a arranhar as paredes, meus cabelos a entupir os ralos, as lágrimas a transbordar pela tampa do diminuto espaço em que eu nunca coube.
as lacunas nunca se preencheram, a voz nunca retornou ao que era. mas o tamanho foi dobrando, redrobrando e eu não cabia em você e não cabia em mim também.
você me feriu como se eu fosse ferro, esperando que eu fosse água para arrefecer seu caos.
eu achei que seria atlas, o sustentáculo do mundo. mas me tornei sísifo carregando minhas próprias pedras.
terça-feira, outubro 12, 2021
Inteiriça
você me pediu pra ser inteira contigo.
mas pra ser inteira com você, precisei me fazer metade.
(olho pelas frestas da porta e caibo nos minúsculos espaços que antes não conseguiria ocupar. apequenei, mas inteira sou).
terça-feira, outubro 05, 2021
Óleo sobre tela
(Já sentiu estar presa no mesmo lugar?
As páginas dos dias, meses, anos mudaram. E a tela continua pequena.)
O branco vazio vai sendo preenchido por camadas e mais camadas de tinta óleo que não seca, mas se desgasta, o verde torna-se, pouco a pouco, marrom, o vermelho torna-se, pouco a pouco, marrom. a opacidade dos olhos passa a chamar mais atenção do que o brilho que um dia existiu. as cores tornam-se uma só dentro dos contornos pretos, marcados (em ferro, madeira e pó).
A tela, antes vazia, sinônimo de uma vida por vir, a constituir-se, abrir-se ao mundo, transforma-se em um tecido poído e sujo, embrulhado de mal jeito no fundo do armário. As pinceladas, agora, são meros rastros do que já foram e os pequenos furos das traças já se fazem mais que visíveis. Vê-se que a pintora tentou fazer e refazer, tentou colocar pequenos remendos nos rasgos maiores, refinou as técnicas para que alguma cor fosse reanimada, usou cola em bastão nos reparos com papel para não deixar o tecido ainda mais enrugado. Tudo em vão.
A tela continua cada vez mais a preencher-se sem sentido. Os pontos pretos vão se proliferando como fungos, mas são só tinha velha antes colorida. Os fungos trariam vida, a pintora pensa. Os fungos cobririam todo o rosto antes vívido, agora pálido, o vestido antes novo, agora roto, roto como a tela que é invadida pelo marrom profundo e pelo preto marcado e pelo preto em pontinhos, pequenos pontinhos que poderiam ser vida. Mas não são.
A tela em branco foi preenchida pela tinta e pela poeira e pela água que inundou todos os cômodos e todas as tralhas foram lavadas e a tela permaneceu. No mesmo lugar. As páginas dos dias, dos meses e dos anos mudam. As cores originais desaparecem. A pele amarelada, os olhos opacos, a boca de um rosa sem sangue, as veias sem sangue, o peito sem sangue.
A tinta óleo nunca seca. E ainda assim a tela não consegue retornar à ficção de seu esplendor.
domingo, setembro 19, 2021
Alter ego
Estou certa de que tua morte fez morada em mim porque agora posso conversar com você. aquela pessoa interior que me acompanhava, com quem conversava e dividia meus dramas mais superficiais - os profundos, não gosto de tocar - agora tem voz, cheiro e até cor de cabelo.
A tua morte criou em mim uma outra eu, agora recheada de você, que pode escutar tudo o que eu nunca fui capaz de dizer. que não sou capaz de dizer. então, eu penso alto e você agora me ouve porque sua ausência provocou o nascimento de alguém com quem conversar. você está em mim e ainda assim não está mais.
Confesso que, às vezes, eu grito na esperança de que, de repente, você ressurja para mandar eu abaixar a voz. nesse meu som que ecoa e se renova, eu escuto você dizer que se orgulha da cama arrumada e da casa limpa.
Nesse instante, exatamente nesse instante do "orgulho", eu sei que sou só eu de novo conversando comigo mesma sobre os meus traumas mais banais - quem nunca quis que a mãe sentisse satisfação e felicidade ao se deparar com a vida das filhas?
Eu grito de novo porque não consigo respirar e espero que o som abafado no travesseiro seja só isso mesmo e não meu cérebro tentando me matar. Eu grito e acordo com tremor nas pernas e não posso te afirmar se é meu corpo sendo você e eu entendendo a repreensão ou se sou eu fugindo e entrando na mesma trilha desastrosa e meu corpo dizendo pra não ir.
Eu atendo o seu comando e começo a falar baixinho e você vira as costas e fica muda. anda um pouco para frente e desvia da gaveta semi aberta do armário de madeira maciça que nunca te pertenceu, esteve por 15 anos aguardando o dono que nunca apareceria.
Você desvia e fecha a gaveta com a mão e a porta se abre e faz aquele barulho de filmes de terror e você ajusta o pedaço de papel e empurra a porta com aquele encalço. você nunca arrumou a porta porque o armário nunca foi teu, mas era.
E como tudo que te pertenceu, não era. nada era e tudo era. e tudo é. porque sua morte foi impregnando todos os cantos e a cada curva, portal ou rua sem saída, tudo é você. até a voz dentro de mim. não há música que espante ou rato que afugente. você não tem medo.
você se tornou um eu com quem eu posso dizer eu te amo, me desculpe, eu te perdoo. e, como você é você, e sou eu, eu sei que não há resposta.
sexta-feira, setembro 03, 2021
Mandíbula
a lágrima esbarra nos dentes. o luto é a dor fina por ela gerada. dói fininho, até a garganta. e retorna pelos ouvidos e olhos. em forma de água.
segunda-feira, agosto 30, 2021
As mentiras que as mães contam
Para que possamos lidar com o luto, dizem que é preciso falar sobre a morte, nos prepararmos para a morte, compreendermos que a existência é finita.
Eu duvido. Não porque eu ache desimportante, entendam. Mas porque questiono se tal preparação seja capaz de mudar o abalo sísmico que a morte causa, que o extirpar alguém do mundo seja amenizado pelo reconhecimento do fim.
Você sempre me ensinou sobre a morte. Aliás, sobre o que chamava de desencarne. Sempre ensinou que a vida carnal acabaria, que sua existência, que a minha, que a de todos os pequenos e grandes seres têm como a linha de chegada não a vitória, mas o próprio fim. A certeza da finitude sempre esteve ao meu lado. Ao contrário de você, no entanto, nunca consegui sentir o sublime da crença no plano espiritual, no sobrenatural, nos anjos, nos demônios, nos espíritos brincalhões ou nos obsessores. Eu nunca senti qualquer conforto fora deste mundo. O fim da sua existência corporal sempre era seguida da certeza que você se manteria em espírito, que estaria ao nosso lado.
E talvez essa tenha sido a sua mentira: sua morte foi o fim de tudo, do chão, do ar, do céu, das águas, de mim. O seu fim foi tamnbém meu fim. Arrancada de mim, sua voz, seu cheiro, suas palavras, seus conselhos, suas brigas, nada reverbera mais. Só a ausência ecoa e ecoa e ecoa. Como um silêncio ensurdecedor poderia ecoar? Como o que não existe pode transbordar? Esse é o milagre do seu fim: a certeza de que tudo sai das bordas, as fronteiras se esfarelam com facilidade, as vasilhas nada mais retêm, as lágrimas não são engolidas, o sangue não pára de jorrar e, mesmo assim, não morro. Seu fim criou um silêncio que preenche e transborda, e, simultâneamente, o vácuo vai sugando lentamente todo o ar de cada célula pequenina que passa a viver a morte. O seu fim trouxe o milagre dos espaços preenchidos com vazios, os pulmões que se dilatam e se contraem mas nenhuma partícula de oxigênio se move no sentido correto.
Ou, talvez, a sua mentira tenha sido contada como uma verdade. Ou uma meia verdade. Meias verdades são mentiras? Você contava da sua morte como se o sal do seu suor ainda estivesse em seu nariz com pontos pretos e que o seu medo de água ainda estaria presente. Está. Só que não em você. Sua verdade foi dizer que estaria aqui. E está. Mas esse como, o como dilacera. Eu achei que saber previamente da sua morte poderia trazer algum consolo. Eu sabia que estaria próxima, eu ouvi seu som da morte, eu ouvi no seu gemido que logo mais seu corpo estaria morto e enterrado. Saber não vale nada. Saber que você chegaria ao fim não preveniu que eu não soubesse mais caminhar. Não porque não saiba elevar o pé devagar, mover a perna para frente e recolocar o pé, devagar, ponta do pé primeiro, calcanhar depois e com a outra perna fazer da mesma forma, levantar, mover, baixar, isso eu sei. O que me faz parar, então, em frente ao espelho é saber que não existe mais caminho, que eu sou frangalhos e farrapos e que não importa o quanto eu finja bem que te esqueci, você retoma meus sonhos, eu que sempre tenho pesadelos, e vem de volta à tona todo o seu sofrimento, seus saberes e não saberes. Minhas mãos suam, meus lábios suam, eu acordo e você continua morta.
Você contava que seu desencarne chegaria. Eu achava que saberia lidar com isso. Eu achava que aquele primeiro sonho, ainda nova, em que você morria caindo da escada seria mentira. Você caiu dos meus braços, caiu da cama, caiu no sofá. Caiu e eu não sabia se você se levantaria. Não levantou. Você contou e contou e contou. E eu acreditei que sentiria tudo, menos saudade.
"Aonde está você agora além de aqui dentro de mim?" - Vento no litoral. Legião Urbana.
quarta-feira, julho 28, 2021
16 de setembro de 1948. 16 de setembro de 2020.
Hoje se encerram meus 16 dias de luto. Entre a data da morte e a do nascimento, tento me lembrar dos desafios com os quais você me presenteou. Achei que eram desproporcionais. Mas não eram. Eram sua dádiva para que eu seguisse. Para que eu conseguisse seguir.
Entre o estridente choro da vida e o gutural som da morte, tento tatear pelos castelos construídos em minha memória, atrás de você. E encontro seus cabelos cacheados e escuros, sua pele sem cravos e sem rugas, suas malas desfeitas como se agora retornasse de viagem.
Entre a data burocrática da morte e a data simbólica da vida, tento relembrar do seu sorriso, da sua voz. Algum dia, será, ouvirei novamente você perguntando perguntas irritantes? Ouvirei seus passos nas minhas casas, nos meus lares? Ouvirei sua voz chamando meu nome? Haverá um dia em que eu ouvirei de novo?
Entre seu dia de morte e seu dia de vida, eu morro e renasço ainda com a dor de não existir mais no mesmo tempo que você. De não estarmos mais no mesmo espaço, de não respirarmos o mesmo ar. De não existir na mesma vida que você.
Entre seu dia de morte e seu dia de vida, relembro que você me deu a liberdade. Criou-me com asas, abriu-as no alto e disse: salte! E eu saltei. Pulei, mas ainda aguardo que você me ampare gentilmente.
sente aqui ao meu lado. encosta seu braço no meu, toque de leve seu dedo em minha coxa. fique em silêncio, pode deixar que o tempo falará por você. olhe para o lado, assim, sem graça, desvie o olhar. quero te ver chorar, quero te ver por inteiro. não quero te ver chorar, não quero fazer sofrer. duvide, saia, retorne. encoste aqui seu pé no meu enquanto deitamos no chão para refrescar.
sente aqui ao meu lado. ouça as palavras que eu preciso dizer. preciso? impreciso. encoste de leve seu nariz na minha nuca enquanto lavo a louça. ria, eu sou desastrada, pegue o copo da minha mão, pode deixar que eu encontro o algodão para o sangue estancar. deixe sangrar. deixe eu cuidar desse machucado. deixe eu curar essas dores. deixe doer. em quem doer.
sente aqui ao meu lado, encosta seu cheiro no meu. toque de leve meu rosto molhado. deixe que eu seguro minhas lágrimas. não segure as suas. transborde. deixe a tempestade surgir. brote após dois intensos dias de chuva. deixe-se sentir meu cheiro. nosso cheiro. cheiro de terra vermelha que não absorve o que não é para si.
sente à minha frente. encoste seu nariz no meu. peça desculpas. peça para ir. peça para voltar. e vá. talvez, quem sabe, volte. voltar para onde? deixe que a tristeza invada. o seu ser, o meu ser. encoste seus lábios em minhas dores, sinta o gosto salgado que escorre pelos meus poros. deixe eu verter em lágrimas e suor, deixe que eu transborde.
não sente mais ao meu lado. levante-se. deixe rufar os tambores. ponha-se de pé. chega o momento da guerra. deixa que eu fico aqui. peça para ir, vá para lutar. volte ou não volte. caminhe com calma, mas com firmeza nos passos. pressinta e decida. e lembre-se: não há território aqui a conquistar.
(no play: "deixa, se me ama me deixa, amar também é largar" — Dandara Manoela, Transbordar).
Vênus
enxergo a mim nos limites do seu corpo. receio nunca mais ver seus olhos. enxergo todos os detalhes, portanto. vejo você refletido em mim pelas lentes da memória — vaga, se apaga, confusa, retorna.
escuto nas músicas partilhadas o som da sua voz. a minha voz tenta emular o que conversamos, tenta re-falar o falado. escuto você em mim pelas palavras jogadas como se ao vento fossem — mas devidamente ouvidas, sentidas, ressonantes.
toco em você ao tocar em mim. sinto com a ponta dos dedos as suas dores que também são as minhas. encosto nos recados colados nos espelhos e tateio a saudade que não deveria existir. sinto, como se você fosse eu — porém que toque será esse se não puder se materializar?
o gosto de sal do dia trabalhado está nas papilas gustativas que apagam qualquer vestígio de um nós que existia somente no café. preto. amargo. salgado, agora. quem sabe o gosto se transforma com o tempo?
(angústia de separação de mim mesma)
Essa não é uma história de amor
Hoje, não tem poema, conto ou crônica, nem mesmo texto fácil e corrido emocionado. Não há espaço para o grito de saudade que eu enforco antes de sair pela garganta, não há lugar para a lágrima que eu engulo antes que possa chegar aos olhos, não há ferida pois cerro o punho e não encosto nas paredes.
Hoje, não tem palavra bonita ou feia ou dolorida ou sublime. Não há uma palavra sequer que possa expressar o horror estampado nos olhos que projeto como se fossem em mim mesma; não há palavra que consiga dizer o que eu sinto e tento afirmar; não tem palavra que comunique o saber que não se está no seu lugar.
Hoje, não tem poema, conto, crônica, texto que indique caminhos a serem cursados, e trabalhos a serem finalizados, e pareceres a serem afirmados. Não tem relatório, prosa ou poesia que dite ao meu estômago que não adianta nada embrulhar, que transcreva no meu cérebro que não adianta nada negar, que tatue em minha pele que não há saídas a pegar.
Hoje, não tem verso que transforme sofrimento em beleza, que diga aos outros que seria bom me conhecer, que dê roupa nova à amargura, que adoce o azedo da vida. Não tem prosa, verso ou canto, não tem trova, brado ou hino, não tem ópera, peça ou choro que core a face novamente.
Hoje, não tem sol que toque minhas mãos e seja capaz de aquecer, fogo que queime as cinzas há muito abandonadas ao léu, sangue que renove o mundo ao escorrer pela face.
(a mão ainda dói dos últimos machucados, eu ainda sofro sem saber como estancar a fonte).
Quando minha mãe morreu
Quando minha mãe morreu, eu também morri. Morreu um eu e nenhum novo eu nasceu. Quando minha mãe morreu, morreu a filha. Mas não nasceu outra mãe, outra filha, outro ser. Não completei minha jornada, não deixei nada pra trás, não nasci de novo, não dei mais valor à vida. Só morri.
Eu não morri porque vi a morte de perto.
Mas por saber que nunca mais existirei no mesmo ar, no mesmo tempo. Nunca mais a existência será território conhecido, será território nosso. Eu me desterrei, eu fui desterrada. Desterritorializada. Eu morri porque ouvi e porque vi.
Morri porque ela morreu e eu vi e eu estava lá. E, se faz algum sentido, continuo viva, apesar de ter morrido. Em 2018, eu morri. Eu 2019, eu matei. Em 2020, morri de novo. Espero, algum dia, nascer.
Da última vez que vi essa vista, que sentei em frente a essa janela e minhas coxas grossas colaram na cadeira que parecia mais confortável do que é de fato, da última vez que olhei para o lado de fora e enxerguei todas essas luzes (entre as brancas e as amarelas), eu dei meus passos. Movi minhas peças. Enxerguei, me revi, titubeei, mas fui.
Da última vez que eu tinha visto essa vista, um rasgo de caos, de dor, de amor, de luz, mais dor, mais clareza, uma fissura se formou e dividiu meu corpo em dois. Eu senti a chuva bater nas folhas lá fora, o cheiro recém-chegado das chuvas nesses campos secos, e em um movimento rápido fui capaz de escapar. Escapar de outras amarras, mas não de mim. Seria possível, algum dia, escapar de mim mesma? Paira a dúvida porque alguns peixes morrem pela boca.
Da última vez, da outra última vez que eu olhei e enxerguei essa inconstância de luminosidades, eu esparramei meus rios de lágrimas e de vômito e de catarro e daquilo que nos parece escatológico demais para existir. E eu existi. Eu olhei, me enxerguei, escapei, senti. E respirei. Pela primeira vez, parece, eu respirei. Depois, morri. De novo, de novo e de novo. Quantas mortes podem-se ter em vida? Quantas vezes posso renascer ao fugir? O contrário do morrer não é nascer, é respirar.
Da última vez que eu tinha visto essa vista, a decisão havia sido nunca mais vê-la. Encontrar outros toques, sentir outros ares, domar outras feras. Algumas coisas sempre estarão inacabadas. A inescapável vontade de dizer "e se". De viver o "e se". E eu vi. Fui. E retornei. E hoje há certa tranquilidade no olhar. Saber-se. Apoderar-se. Entender-se. Querer, saber querer, saber as tristezas dos quereres inacabados e as felicidades dos desejos compreendidos.
Da última vez que eu havia visto esta vista eu não tinha dimensão de (algumas) verdades. E que nem sempre elas se concretizarão.
("Before the truth will set you free it will piss you off. Before you find a plaece to be you’re gonna lose the plot". Ao som de: BMTH — Mantra. https://www.youtube.com/watch?v=VAXg78MKJcM )
Disciplinada, rigorosa, cobranças e auto cobranças, ser criativa e sentir toda a dor de não mudar o mundo.
Estar na mesma situação daquelas que eu amei tanto, que eu acolho, que eu disse tanto que as relações se modificam, que as dores podem acabar.
Estar no mesmo poço, no mesmo lodo e querer segurar a mão de cada uma. De cada senhora, de cada jovem, de cada mulher, de cada criança que eu ouvi. Como eu ouvi mal, como eu deveria ter escutado melhor. Feito mais.
Eu queria ter trazido cada uma no meu colo e embalado e ninado seus sonhos. A cada uma que eu falhei, eu entendo tudo agora.