sexta-feira, novembro 02, 2018
Há dois meses do falecimento de minha mãe, escrevo esta carta com o peito aberto. Devastado pelos acontecimentos dos últimos anos, dilacerado pelos últimos dias. Escrevo como uma reverência a tudo que aprendi com ela, com os erros e com os acertos. Escrevo porque caminhei com ela e aprendi a falar daquilo que me aflige. Mas também porque minha mãe foi minha maior "doutrinadora". Em tempos de acusações chulas, de propostas cerceadoras da liberdade, de ataques à produção crítica de conhecimento, essa carta é meu lamento - e meu apelo. Minha mãe faz falta: era com ela que eu discutia assuntos profundos sobre a vida social, sobre os tortuosos e estranhos lugares pelos quais eu precisava percorrer, sobre as dores e as felicidades de dias de trabalho. Minha mãe nunca foi minha confidente, mas foi minha educadora, minha provocadora, minha possibilidade de ver e fazer o mundo. E ela me mostrou o básico daquilo que hoje sou, penso e defendo.
Quando criança, lá pelos meus 7 anos, as professoras e professores daqui do DF decretaram uma das maiores e mais intensas greves já enfrentadas. Foram cerca de 3 meses de paralisação, mobilizações, assembleias. Minha mãe foi intensa participante. Embora não fosse sindicalizada, acreditava que só conseguiriam aumento de salário e melhoria nas condições de trabalho - muito precárias - se a greve fosse bem sucedida. Eu, que estava na primeira série e estudava em escola pública, também estava em casa porque as professoras estavam em greve. O resultado: minha mãe me levou em muitas e muitas assembleias. Algumas delas, duas vezes por semana. E me explicava o que estávamos fazendo ali, quais eram as condições de trabalho que ela tinha, a briga por aumento de salário. De acordo com ela, naquela época, ela quase pagava para trabalhar. Eu comecei a entender ali a importância de uma greve para minha educação. Talvez eu tenha sido, assim, umas das poucas estudantes que nunca reclamou de períodos longos de paralização - e foram muitos ao longo da minha vida escolar. Aprendi ali a protestar quando não tínhamos professor de inglês, de química e de matemática. Ou de reclamar quando a licença maternidade de professora não gerou sua substituição.
Foi com minha mãe que também aprendi que eu não deveria ser humilhada em sala de aula por não partilhar a mesma fé que a professora. Na quinta série, a professora de ensino religioso demandou que levássemos uma Bíblia. Na minha casa, não tinha uma. Ao chegar em sala de aula, a professora perguntou que tipo de casa demoníaca eu vivia para não ter uma Bíblia. O que ela não sabia é que minha mãe era colega dela: trabalhavam juntas todas as noites. E desde esse episódio, minha mãe me fazia levar o Evangelho Segundo o Espiritismo - fé que minha mãe professou durante cerca de 40 anos - mas que eu abandonei depois - para um misto de coisas: estampar que poderíamos falar de outras crenças naquele espaço e para provocar a colega que chamou que comparou minha família ao inferno.
De modo similar, já no 2º grau, supostamente eu teria o direito de escolher não cursar ensino religioso. Mas, minha escola não tinha atividades que substituíssem essa aula. Aí, eu não poderia ficar nos corredores e precisava assistir às aulas. O professor, com o tempo, se irritou muito com minhas perguntas, com meu sarcasmo adolescente e parou de me chamar pelo nome. Ele fazia chamada e me chamava pelo número: 14. Eu carreguei esse número os 3 anos do 2º grau. Minha mãe queria que eu não criasse confusão com ele. Então, eu comecei a matar várias aulas do professor. Eu era uma aluna razoável e, no 1º ano, fui aluna destaque duas vezes. O professor ficou chocado e disse que não entendia muito como eu poderia ter sido reconhecida pelo meu desempenho. Eu continuei assistindo às aulas eventualmente: meu walkmen estava sempre ligado - minha mãe desaprovava, mas não reclamava disso diante da postura do colega dela.
Eu também aprendi com os erros da minha mãe. Como quando ela contratou uma empregada doméstica e insistiu que a condição para o emprego era a pessoa não engravidar. Quando ela "deixava" as contratadas estudarem e quando uma dessas mulheres foi ao Centro de Saúde e conheceu uma assistente social que explicou a ela a importância de minha mãe assinar sua carteira de trabalho. Foram dias tensos, de muitos conflitos, mas ali eu aprendi que a segurança trabalhista estava além do teto que minha mãe dava e do salário que ela conseguia pagar. Ali eu comecei a perceber as contradições do mundo: uma trabalhadora que lutava por direitos, mas negava a outra trabalhadora muitos deles.
Eu aprendi com minha mãe que relações de gênero são desiguais quando meu pai estava na Guerrilha do Araguaia e ela foi contra as ordens dele e se matriculou em curso supletivo para estudar. Fez todo o segundo grau escondida e só contou para ele quando tinha passado no vestibular. Ela cursou História, mas sempre disse que queria ter feito Economia. Meu pai, de acordo com ela, não concordou porque não era uma profissão feminina. Ele, então, fez vestibular para Economia, mas não entrou. Vejam que ironia. Ele cursou Geografia. Minha mãe passou no concurso da antiga Fundação Educacional e trabalhou em Ceilândia, num colégio que era chamado de a boca do diabo pelos alunos e professores. Depois, passou pela Candangolândia, Núcleo Bandeirante, Plano Piloto, Cruzeiro. Eu fui com ela ela várias dessas escolas - a não ser a de Ceilândia, já que eu ainda não era nascida - e vi de perto o trabalho que ela tinha. Corrigi com ela muitas provas durante finais de semana. Ela tinha carga horária de 40 horas, preparava aulas e ainda precisava preencher diários e colocar notas. Ela me dava o gabarito e eu a ajudava a corrigir. Dias e dias de trabalho cansativo. Ela me ensinou que, às vezes, a gente acha brechas e faz o melhor com as oportunidades que temos. E também me ensinou que, às vezes, a falta de oportunidades é frustrante, castradora, e cria feridas profundas que nem o tempo é capaz de curar. Uma delas foi sua frustração profissional.
Todos os anos, perto do Natal, minha mãe me levava no lar dos pequeninos, um abrigo para crianças e adolescentes que era dirigido por uma grande amiga sua, Ilma. A Ilma também morreu esse ano, alguns meses antes da minha mãe. Acredito que tenha sido de uma dor imensa para ela ver a amiga de tantos anos falecer depois de uma luta incansável contra um câncer de intestino, luta que durou dez anos. Antes de adoecer, Ilma e minha mãe faziam a festa de Natal das crianças que moravam no abrigo. Eu ia para me divertir: brincava com todo mundo, ajudava a colocar a mesa. Minha mãe me ensinou que ela estava ali pela religião, mas que eu era igual àquelas crianças. Que os brinquedos que eu tinha e que elas deveriam ter seriam os mesmos, comprados nas mesmas lojas. Que nós habitávamos o mundo em pé de igualdades. Essa foi outra contradição: minha mãe, como espírita, acreditava em certa desigualdade espiritual, na escolha pela desigualdade. Foi uma das grandes disputas morais que tivemos ao longo da vida dela. Talvez, isso fique para uma outra carta. Ainda assim, ali, eu e todas as crianças parecíamos iguais. Ou era essa a tentativa de ensinamento.
Eu aprendi com minha mãe que quem não gosta de escola, não reprova, que quem é preguiçoso (e eu sou) faz tudo logo de uma vez. Eu aprendi com ela que ler era a melhor forma de questionar e que a escola era para isso: me mostrar outras formas de ver as coisas: com professoras, diretoras, colegas, servidoras variadas, merendeiras. Que a diversidade é boa e que a escola é para mostrar outras perspectivas que as famílias não conseguem. Que a escola é local de conhecimento, de questionamento e de muitos conflitos. Ela me repreendeu quando eu fiz minha professora de português do 3º ano chorar - mas ria comigo depois dessa história meio tragicômica. Ela também me incentivou a fazer o que eu quisesse: Pedagogia, Serviço Social, Engenharia Civil. Qualquer escolha seria minha e ela não influenciaria para, se eu me arrependesse, não pudesse responsabiliza-la pela minha decisão. À época, eu fiquei muito chateada com essa fala. Hoje, agradeço muito por ela ter deixado eu trilhar meus próprios rumos.
Com isso, eu agradeço à minha mãe pelos acertos e pelos erros. Mas também agradeço por ela nunca ter me negado a leitura de qualquer livro, de ter me mandado entregar comida com a mão direita quando Bob Marley, rapaz em situação de rua que vivia próximo à minha casa, pediu que eu assim fizesse. Me ensinou a escutar as histórias das pessoas, me ensinou que podemos fazer um mundo de menos sofrimento. Que podemos segurar uns aos outros, embora também tenha me ensinado com muita dor algumas dessas lições. Eu agradeço à minha mãe por tudo isso e agradeço à escola por dar nome aos meus incômodos, por me ensinar a compreender aquilo que minha experiência pessoal me mostrava que era ruim para coletivizar lutas. Se eu fui doutrinada, em tempos de escola sem partido, a doutrinação começou em casa. A escola - do pré ao ensino superior - me ensinaram a entender, explicar, pesquisar, produzir. Em tempos de crise nas verdades, em que as pessoas não reconhecem que simplesmente podem ter feito errado, eu agradeço à minha mãe por não ter me deixado desistir quando reprovei em duas seleções de doutorado na entrevista, quando perdi uma das minhas melhores amigas, quando um dos meus gatos sumiu, quando terminei namoros, magoei e fui magoada. Principalmente, agradeço pelo pensamento crítico nesse dia de finados.
Mãe, amo você. Muito.