domingo, agosto 14, 2022

Todo mundo tem direito à memória (Dia dos Pais)

(há alguns meses, um de meus irmãos comentou que nós, as filhas, ficaríamos tranquilas se, quando crescemos, meu pai tivesse whatsapp, implicando com isso que a ausência reclamada não aconteceria, mesmo que as mensagens fossem unicamente de bom dia. eu não tive coragem de dizer a ele que as ausências foram a parte menos traumática. foram as presenças, as doloridas.) é verdade que somos pais e mães e irmãos e irmãs e tias diferentes para cada bebê que nasce. surgem novas pessoas, inteiramente novas e, ainda assim, completamente velhas. somos todos pais e mães e irmãos e irmãs e tias diferentes do que fomos para nossas mães e pais e suas filhas e seus filhos e sobrinhos porque cada gesto, cada cheiro, cada cor, cada pele que toca a nossa pele, desperta o mesmo e o distinto sentimento de que não somos inteiramente nossos próprios corpos e que não podemos confiar nas nossas mãos e nos nossos pés. ao pegar uma pequena criatura, ela pode cair. ao caminhar segurando a mão de outra, o tropeço virá. e sabemos que tudo aquilo é possível e passamos pelas nossas cabeças todos os erros e acertos para que aquele momento seja incrível e aquela nova pessoa e a velha pessoa possam caminhar sem se machucarem mutuamente. mas, prever não é precaver, e prevemos que a rachadura na calçada vai prender o pé da criança e a que a queda fará jorrar sangue de um pequeno joelho que ficará machucado de novo e de novo e de novo. e prevemos, tentamos desviar, e o pé se engancha no buraco da calçada e o caímos de joelho no chão e reabrimos a ferida cuja pele fina quase cicatrizava. e de novo, e de novo, e de novo, as risadas alheias se tornam choro engolido que faz doer os ouvidos quando passa pela garganta. o ranho arranha tudo que desce ali para fazer o estômago revirar e os olhos marejam e o sal dói quando as pálpebras se fecham. e é iniciado o ciclo de parar, pensar, calcular, andar, torcer para não cair para não sofrer o ralhar das bocas que riem e que gritam e não sofrer o tapa que viria a educar que não se pode cair. não se pode cair. prever, precaver, fingir, esconder. sentar no banheiro agachada e chorar baixinho enquanto todas as suas entranhas e as mais sensíveis partes de pele arderem e o ar secar de tanta dor, dsor, dor. e fingir e fingir e fingir. e fingimos até conseguir proteger algumas das novas pessoas para que não tenham que chorar sozinhas, mas é tarde demais porque não somos a única mãe, pai, filho, irmã, tia do mundo e falhamos porque estamos sempre fadadas ao fracasso de ser nova pessoa para novas pessoas quando ainda choramos por conta dos pequenos cortes de papel embaixo de nossas unhas sempre bem feitas. e seremos de novo e de novo a lágrima entalada, a voz entalada, o vômito entalado, a vida entalada na boca no estômago. para cada bebê que nasce, somos uma pessoa completamente nova e completamente velha, enrijecidas ou amolecidas pelo tempo (os curtos e os longos períodos que nos levam e nos trazem e nos jogam sob as águas para que nos lavemos e sejamos novas pessoas completamente distintas para a pŕoxima que vier). mas, cada bebê que nasce, abre todas as fendas e abismos que tão bem achávamos que sabíamos esconder com papel crepom e fita crepe. e a cada bebê que nasce, surge um novo pai que balança seus filhos na gangorra e enquanto uns se divertem, as outras têm certeza de que irão cair. e quando chegar o dia dos pais, a memória parecerá a mesma:o dia dos pais em que os pais levaram os filhos e as filhas para balançar na gangorra. lembra como estávamos altas? e gargalha. fomos deixadas ali de castigo. lamenta-se. lembra que perdeu o equilíbrio? lembra da gargalhada que ele deu quando eu caí? todo mundo tem direito à memória. todo mundo tem direito a dizer sobre aquilo que aprendeu, sobre os valores que o pai do pai do pai de quem tem esse tanto de pai ensinou. o problema reside aí: todo mundo tem direito à memória. todo mundo tem direito à memória. mas eu preferia as ausências. estas, não demandariam esquecimento.