sexta-feira, outubro 29, 2021

Das poucas coisas boas do mundo

passei o dia andando de um lado pro outro esperando o som do tremer do telefone. ia e vinha pela sala como se hoje fosse o melhor dia da minha vida. como se não houvesse nada a fazer a não ser esperar a vibração. dancei várias vezes ouvindo a mesma música e repeti, repeti, repeti, enquanto cada palavra ecoava nas paredes ainda vazias. cada palavra que me dizia pra não deixar pra depois. li e reli as conversas antigas, olhei profundamente nos meus próprios olhos e me permiti sorrir. sorrir e chorar e sentir esse frio na barriga e esse calafrio na pele e o toque suave no meu cabelo. andei e andei e andei de um lado para outro até o piso gastar e cantei alto e brindei a mim mesma e caí cansada na cama e clamei aos céus que não fosse mentira. ficção, sim, narrativa. mas não mentira. a ficção é um mundo novo, a imaginação que não se deixa prender mais nas garras do tempo anterior. (olho para você e sei que o passado virou futuro do pretérito, aquele que nunca se realizará). no play: https://open.spotify.com/track/4G02O6Qd846OFww8HHQamh?si=Y_dqTVhGQ6G9zRq6U97eVg&context=spotify%3Asearch%3Aescopia

sexta-feira, outubro 22, 2021

Mitologias

me rasgou como papel antigo a ser descartado, mas me guardou em uma pequena caixa. e fui aos poucos umidecendo, emudecendo, perdendo as cores que se misturavam entre elas, a tinta borrada da caneta no canto da página em que escrevi seu nome. me dilacerou as bordas enquanto aos prantos eu pedia para colar os fragmentos de quem eu fui, para que me fizesse outra. me cortou enquanto eu clamava para que preenchesse as frestas com ouro. me quebrou em micro estilhaços para que eu fosse sua parte, mas ora não me encaixava por ser grande demais, ora por me apequenar diante da sua voz. tentou construir outros moldes quando percebeu que a caixa me deixava transpirar e evitava que eu perdesse as cores e me tornasse neutra (nula, talvez). me cuspiu enquanto eu pedia para que pintasse outras cores. me despedaçou e me juntou e machucou e nas lacerações jogou seu ódio a si e a mim e a tudo que eu lembrava. me tirou de tudo o que eu conhecia e, se por um minuto isso foi o êxatase, depois foi a maldição. me arrancou as cordas vocais para que que não falasse, gritasse, para que nenhum som saísse do modelo perfeito que você criou para você, para que tudo fosse perfeito. mas meus pequenos braços começaram a arranhar as paredes, meus cabelos a entupir os ralos, as lágrimas a transbordar pela tampa do diminuto espaço em que eu nunca coube. as lacunas nunca se preencheram, a voz nunca retornou ao que era. mas o tamanho foi dobrando, redrobrando e eu não cabia em você e não cabia em mim também. você me feriu como se eu fosse ferro, esperando que eu fosse água para arrefecer seu caos. eu achei que seria atlas, o sustentáculo do mundo. mas me tornei sísifo carregando minhas próprias pedras.

terça-feira, outubro 12, 2021

Inteiriça

você me pediu pra ser inteira contigo. mas pra ser inteira com você, precisei me fazer metade. (olho pelas frestas da porta e caibo nos minúsculos espaços que antes não conseguiria ocupar. apequenei, mas inteira sou).

terça-feira, outubro 05, 2021

Óleo sobre tela

(Já sentiu estar presa no mesmo lugar? As páginas dos dias, meses, anos mudaram. E a tela continua pequena.) O branco vazio vai sendo preenchido por camadas e mais camadas de tinta óleo que não seca, mas se desgasta, o verde torna-se, pouco a pouco, marrom, o vermelho torna-se, pouco a pouco, marrom. a opacidade dos olhos passa a chamar mais atenção do que o brilho que um dia existiu. as cores tornam-se uma só dentro dos contornos pretos, marcados (em ferro, madeira e pó). A tela, antes vazia, sinônimo de uma vida por vir, a constituir-se, abrir-se ao mundo, transforma-se em um tecido poído e sujo, embrulhado de mal jeito no fundo do armário. As pinceladas, agora, são meros rastros do que já foram e os pequenos furos das traças já se fazem mais que visíveis. Vê-se que a pintora tentou fazer e refazer, tentou colocar pequenos remendos nos rasgos maiores, refinou as técnicas para que alguma cor fosse reanimada, usou cola em bastão nos reparos com papel para não deixar o tecido ainda mais enrugado. Tudo em vão. A tela continua cada vez mais a preencher-se sem sentido. Os pontos pretos vão se proliferando como fungos, mas são só tinha velha antes colorida. Os fungos trariam vida, a pintora pensa. Os fungos cobririam todo o rosto antes vívido, agora pálido, o vestido antes novo, agora roto, roto como a tela que é invadida pelo marrom profundo e pelo preto marcado e pelo preto em pontinhos, pequenos pontinhos que poderiam ser vida. Mas não são. A tela em branco foi preenchida pela tinta e pela poeira e pela água que inundou todos os cômodos e todas as tralhas foram lavadas e a tela permaneceu. No mesmo lugar. As páginas dos dias, dos meses e dos anos mudam. As cores originais desaparecem. A pele amarelada, os olhos opacos, a boca de um rosa sem sangue, as veias sem sangue, o peito sem sangue. A tinta óleo nunca seca. E ainda assim a tela não consegue retornar à ficção de seu esplendor.