quarta-feira, julho 28, 2021

16 de setembro de 1948. 16 de setembro de 2020.

Hoje se encerram meus 16 dias de luto. Entre a data da morte e a do nascimento, tento me lembrar dos desafios com os quais você me presenteou. Achei que eram desproporcionais. Mas não eram. Eram sua dádiva para que eu seguisse. Para que eu conseguisse seguir. Entre o estridente choro da vida e o gutural som da morte, tento tatear pelos castelos construídos em minha memória, atrás de você. E encontro seus cabelos cacheados e escuros, sua pele sem cravos e sem rugas, suas malas desfeitas como se agora retornasse de viagem. Entre a data burocrática da morte e a data simbólica da vida, tento relembrar do seu sorriso, da sua voz. Algum dia, será, ouvirei novamente você perguntando perguntas irritantes? Ouvirei seus passos nas minhas casas, nos meus lares? Ouvirei sua voz chamando meu nome? Haverá um dia em que eu ouvirei de novo? Entre seu dia de morte e seu dia de vida, eu morro e renasço ainda com a dor de não existir mais no mesmo tempo que você. De não estarmos mais no mesmo espaço, de não respirarmos o mesmo ar. De não existir na mesma vida que você. Entre seu dia de morte e seu dia de vida, relembro que você me deu a liberdade. Criou-me com asas, abriu-as no alto e disse: salte! E eu saltei. Pulei, mas ainda aguardo que você me ampare gentilmente.
sente aqui ao meu lado. encosta seu braço no meu, toque de leve seu dedo em minha coxa. fique em silêncio, pode deixar que o tempo falará por você. olhe para o lado, assim, sem graça, desvie o olhar. quero te ver chorar, quero te ver por inteiro. não quero te ver chorar, não quero fazer sofrer. duvide, saia, retorne. encoste aqui seu pé no meu enquanto deitamos no chão para refrescar. sente aqui ao meu lado. ouça as palavras que eu preciso dizer. preciso? impreciso. encoste de leve seu nariz na minha nuca enquanto lavo a louça. ria, eu sou desastrada, pegue o copo da minha mão, pode deixar que eu encontro o algodão para o sangue estancar. deixe sangrar. deixe eu cuidar desse machucado. deixe eu curar essas dores. deixe doer. em quem doer. sente aqui ao meu lado, encosta seu cheiro no meu. toque de leve meu rosto molhado. deixe que eu seguro minhas lágrimas. não segure as suas. transborde. deixe a tempestade surgir. brote após dois intensos dias de chuva. deixe-se sentir meu cheiro. nosso cheiro. cheiro de terra vermelha que não absorve o que não é para si. sente à minha frente. encoste seu nariz no meu. peça desculpas. peça para ir. peça para voltar. e vá. talvez, quem sabe, volte. voltar para onde? deixe que a tristeza invada. o seu ser, o meu ser. encoste seus lábios em minhas dores, sinta o gosto salgado que escorre pelos meus poros. deixe eu verter em lágrimas e suor, deixe que eu transborde. não sente mais ao meu lado. levante-se. deixe rufar os tambores. ponha-se de pé. chega o momento da guerra. deixa que eu fico aqui. peça para ir, vá para lutar. volte ou não volte. caminhe com calma, mas com firmeza nos passos. pressinta e decida. e lembre-se: não há território aqui a conquistar. (no play: "deixa, se me ama me deixa, amar também é largar" — Dandara Manoela, Transbordar).

Vênus

enxergo a mim nos limites do seu corpo. receio nunca mais ver seus olhos. enxergo todos os detalhes, portanto. vejo você refletido em mim pelas lentes da memória — vaga, se apaga, confusa, retorna. escuto nas músicas partilhadas o som da sua voz. a minha voz tenta emular o que conversamos, tenta re-falar o falado. escuto você em mim pelas palavras jogadas como se ao vento fossem — mas devidamente ouvidas, sentidas, ressonantes. toco em você ao tocar em mim. sinto com a ponta dos dedos as suas dores que também são as minhas. encosto nos recados colados nos espelhos e tateio a saudade que não deveria existir. sinto, como se você fosse eu — porém que toque será esse se não puder se materializar? o gosto de sal do dia trabalhado está nas papilas gustativas que apagam qualquer vestígio de um nós que existia somente no café. preto. amargo. salgado, agora. quem sabe o gosto se transforma com o tempo? (angústia de separação de mim mesma)

Essa não é uma história de amor

Hoje, não tem poema, conto ou crônica, nem mesmo texto fácil e corrido emocionado. Não há espaço para o grito de saudade que eu enforco antes de sair pela garganta, não há lugar para a lágrima que eu engulo antes que possa chegar aos olhos, não há ferida pois cerro o punho e não encosto nas paredes. Hoje, não tem palavra bonita ou feia ou dolorida ou sublime. Não há uma palavra sequer que possa expressar o horror estampado nos olhos que projeto como se fossem em mim mesma; não há palavra que consiga dizer o que eu sinto e tento afirmar; não tem palavra que comunique o saber que não se está no seu lugar. Hoje, não tem poema, conto, crônica, texto que indique caminhos a serem cursados, e trabalhos a serem finalizados, e pareceres a serem afirmados. Não tem relatório, prosa ou poesia que dite ao meu estômago que não adianta nada embrulhar, que transcreva no meu cérebro que não adianta nada negar, que tatue em minha pele que não há saídas a pegar. Hoje, não tem verso que transforme sofrimento em beleza, que diga aos outros que seria bom me conhecer, que dê roupa nova à amargura, que adoce o azedo da vida. Não tem prosa, verso ou canto, não tem trova, brado ou hino, não tem ópera, peça ou choro que core a face novamente. Hoje, não tem sol que toque minhas mãos e seja capaz de aquecer, fogo que queime as cinzas há muito abandonadas ao léu, sangue que renove o mundo ao escorrer pela face. (a mão ainda dói dos últimos machucados, eu ainda sofro sem saber como estancar a fonte).

Quando minha mãe morreu

Quando minha mãe morreu, eu também morri. Morreu um eu e nenhum novo eu nasceu. Quando minha mãe morreu, morreu a filha. Mas não nasceu outra mãe, outra filha, outro ser. Não completei minha jornada, não deixei nada pra trás, não nasci de novo, não dei mais valor à vida. Só morri. Eu não morri porque vi a morte de perto. Mas por saber que nunca mais existirei no mesmo ar, no mesmo tempo. Nunca mais a existência será território conhecido, será território nosso. Eu me desterrei, eu fui desterrada. Desterritorializada. Eu morri porque ouvi e porque vi. Morri porque ela morreu e eu vi e eu estava lá. E, se faz algum sentido, continuo viva, apesar de ter morrido. Em 2018, eu morri. Eu 2019, eu matei. Em 2020, morri de novo. Espero, algum dia, nascer.
Da última vez que vi essa vista, que sentei em frente a essa janela e minhas coxas grossas colaram na cadeira que parecia mais confortável do que é de fato, da última vez que olhei para o lado de fora e enxerguei todas essas luzes (entre as brancas e as amarelas), eu dei meus passos. Movi minhas peças. Enxerguei, me revi, titubeei, mas fui. Da última vez que eu tinha visto essa vista, um rasgo de caos, de dor, de amor, de luz, mais dor, mais clareza, uma fissura se formou e dividiu meu corpo em dois. Eu senti a chuva bater nas folhas lá fora, o cheiro recém-chegado das chuvas nesses campos secos, e em um movimento rápido fui capaz de escapar. Escapar de outras amarras, mas não de mim. Seria possível, algum dia, escapar de mim mesma? Paira a dúvida porque alguns peixes morrem pela boca. Da última vez, da outra última vez que eu olhei e enxerguei essa inconstância de luminosidades, eu esparramei meus rios de lágrimas e de vômito e de catarro e daquilo que nos parece escatológico demais para existir. E eu existi. Eu olhei, me enxerguei, escapei, senti. E respirei. Pela primeira vez, parece, eu respirei. Depois, morri. De novo, de novo e de novo. Quantas mortes podem-se ter em vida? Quantas vezes posso renascer ao fugir? O contrário do morrer não é nascer, é respirar. Da última vez que eu tinha visto essa vista, a decisão havia sido nunca mais vê-la. Encontrar outros toques, sentir outros ares, domar outras feras. Algumas coisas sempre estarão inacabadas. A inescapável vontade de dizer "e se". De viver o "e se". E eu vi. Fui. E retornei. E hoje há certa tranquilidade no olhar. Saber-se. Apoderar-se. Entender-se. Querer, saber querer, saber as tristezas dos quereres inacabados e as felicidades dos desejos compreendidos. Da última vez que eu havia visto esta vista eu não tinha dimensão de (algumas) verdades. E que nem sempre elas se concretizarão. ("Before the truth will set you free it will piss you off. Before you find a plaece to be you’re gonna lose the plot". Ao som de: BMTH — Mantra. https://www.youtube.com/watch?v=VAXg78MKJcM )
Disciplinada, rigorosa, cobranças e auto cobranças, ser criativa e sentir toda a dor de não mudar o mundo. Estar na mesma situação daquelas que eu amei tanto, que eu acolho, que eu disse tanto que as relações se modificam, que as dores podem acabar. Estar no mesmo poço, no mesmo lodo e querer segurar a mão de cada uma. De cada senhora, de cada jovem, de cada mulher, de cada criança que eu ouvi. Como eu ouvi mal, como eu deveria ter escutado melhor. Feito mais. Eu queria ter trazido cada uma no meu colo e embalado e ninado seus sonhos. A cada uma que eu falhei, eu entendo tudo agora.

Sobre suicídio

O mar revolto toma a praia. Os raios e os trovões indicam que a tempestade ainda está por vir. Os ventos balançam os coqueiros e eles quase quebram. Quase. O quase é a chave: quase quebram, quase há alagamento, quase somos atingidos pela descarga de energia do mundo. O mar revolto toma o peito e não há como vomitar a água salgada que inunda os pulmões. Deixar levar, deixar-se ir. Deixar que a sua existência se mescle a existência do mundo para que o quase igualmente deixe de existir.

Luto

Pra continuar existindo por 2 dias, minha mãe teve que ser ligada a uma máquina de morfina contínua. Ela não morreu sem ar, mas morreu com a respiração profunda, o ronco da morte, ecoando no quarto. Ao ouvir qualquer notícia sobre Manaus, eu ouço aquele som. É inconfundível. Daqueles sons que você não precisa pensar que vai existir ou conhecer como será. Porque você ouve. É simplesmente sabe. Sabe. No. Ato. Se a minha dor não se cura, se eu não esqueço nem um minuto dos últimos dias dela, ou do último dia… (Eu estava lá no último suspiro), imagino o de centenas de pessoas presas a um medicamento e que suas filhas ouvirão seus últimos sons. E estarão destruídas, como eu.

O 3o dia das mães

a dor não ecoa mais todos os dias, não ressoa nas paredes continuamente, ensurdecedora. ela está ali latente, mas não sempre pulsante. ela não toma mais meu sono, minhas manhãs, não lateja mais nos meus dedos a cozinhar, não domina meu olhar para o sol da tarde, não vai se deitar comigo. A dor não ecoa mais todos os dias. Quando percebi que ela não atravessava cada nervo do meu corpo a cada instante, eu fiquei com medo. Medo de esquecer novamente a sua voz, medo de esquecer o formato da suas mãos e os pontos pretos de seu nariz, medo de não saber mais suas cores preferidas ou as roupas que você escolheria, medo de sentir culpa e culpa por sentir medo de fazer com que a senhora passe a não existir em mim. Há pouco eu sinto poder respirar sem que a senhora também respire. Há pouco, muito pouco, não dói sempre que o primeiro sonho sonhado após a sua morte. Eu ansiava e temia esse dia, em que reconheceria que a existência sem a senhora seria possível, em que eu me diplomaria sujeito e não filha. Eu temi e temo esse dia em que constato que não tenho mais chão comum e não choro a perda de território. Eu temo o dia em que você não mais existir em mim. Ninguém lembrará que nossos rostos foram parecidos. Ninguém lembrará das intermináveis conversas à mesa sobre a vida, a morte, as pessoas, as guerras, as fofocas, as sutilezas e outras trocas nem tão sutis assim. Ninguém lembrará dos meus gritos, dos seus gritos, da sua falta de fala ao ficar com raiva, ninguém lembrará de mim junto a você ou você junto a mim. Eu temi e temo esse dia. (Quando eu quis existir sem você é um pretérito imperfeito. Eu queria, mudei de ideia, e agora os desejos concedidos não podem mais ser retratados).