quarta-feira, julho 28, 2021

O 3o dia das mães

a dor não ecoa mais todos os dias, não ressoa nas paredes continuamente, ensurdecedora. ela está ali latente, mas não sempre pulsante. ela não toma mais meu sono, minhas manhãs, não lateja mais nos meus dedos a cozinhar, não domina meu olhar para o sol da tarde, não vai se deitar comigo. A dor não ecoa mais todos os dias. Quando percebi que ela não atravessava cada nervo do meu corpo a cada instante, eu fiquei com medo. Medo de esquecer novamente a sua voz, medo de esquecer o formato da suas mãos e os pontos pretos de seu nariz, medo de não saber mais suas cores preferidas ou as roupas que você escolheria, medo de sentir culpa e culpa por sentir medo de fazer com que a senhora passe a não existir em mim. Há pouco eu sinto poder respirar sem que a senhora também respire. Há pouco, muito pouco, não dói sempre que o primeiro sonho sonhado após a sua morte. Eu ansiava e temia esse dia, em que reconheceria que a existência sem a senhora seria possível, em que eu me diplomaria sujeito e não filha. Eu temi e temo esse dia em que constato que não tenho mais chão comum e não choro a perda de território. Eu temo o dia em que você não mais existir em mim. Ninguém lembrará que nossos rostos foram parecidos. Ninguém lembrará das intermináveis conversas à mesa sobre a vida, a morte, as pessoas, as guerras, as fofocas, as sutilezas e outras trocas nem tão sutis assim. Ninguém lembrará dos meus gritos, dos seus gritos, da sua falta de fala ao ficar com raiva, ninguém lembrará de mim junto a você ou você junto a mim. Eu temi e temo esse dia. (Quando eu quis existir sem você é um pretérito imperfeito. Eu queria, mudei de ideia, e agora os desejos concedidos não podem mais ser retratados).

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