sexta-feira, outubro 22, 2021

Mitologias

me rasgou como papel antigo a ser descartado, mas me guardou em uma pequena caixa. e fui aos poucos umidecendo, emudecendo, perdendo as cores que se misturavam entre elas, a tinta borrada da caneta no canto da página em que escrevi seu nome. me dilacerou as bordas enquanto aos prantos eu pedia para colar os fragmentos de quem eu fui, para que me fizesse outra. me cortou enquanto eu clamava para que preenchesse as frestas com ouro. me quebrou em micro estilhaços para que eu fosse sua parte, mas ora não me encaixava por ser grande demais, ora por me apequenar diante da sua voz. tentou construir outros moldes quando percebeu que a caixa me deixava transpirar e evitava que eu perdesse as cores e me tornasse neutra (nula, talvez). me cuspiu enquanto eu pedia para que pintasse outras cores. me despedaçou e me juntou e machucou e nas lacerações jogou seu ódio a si e a mim e a tudo que eu lembrava. me tirou de tudo o que eu conhecia e, se por um minuto isso foi o êxatase, depois foi a maldição. me arrancou as cordas vocais para que que não falasse, gritasse, para que nenhum som saísse do modelo perfeito que você criou para você, para que tudo fosse perfeito. mas meus pequenos braços começaram a arranhar as paredes, meus cabelos a entupir os ralos, as lágrimas a transbordar pela tampa do diminuto espaço em que eu nunca coube. as lacunas nunca se preencheram, a voz nunca retornou ao que era. mas o tamanho foi dobrando, redrobrando e eu não cabia em você e não cabia em mim também. você me feriu como se eu fosse ferro, esperando que eu fosse água para arrefecer seu caos. eu achei que seria atlas, o sustentáculo do mundo. mas me tornei sísifo carregando minhas próprias pedras.

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